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Acesso e acolhimento à população LGBTQIAP+ ainda são desafios na escola

Experiência de violência e discriminação pode ser transformada por iniciativas que reforcem os vínculos na comunidade escolar

Jhully Domingues não gosta tanto de lembrar da escola. A assistente de loja e consultora de beleza associa o período de estudos a muito preconceito. Mulher trans, ela conta que até na faculdade experimentou hostilidades de colegas.

“Isso nunca me impediu de me dedicar, porque eu sabia que minha vida não seria fácil mesmo. Minha mãe dizia que a única forma de eu crescer na vida era pela educação e eu acho que ela tinha toda razão”, conta a moradora de Cruzeiro do Sul, município de cerca de 90 mil habitantes no Acre.

Bióloga formada, Jhully fez parte do 0,1% de matrículas nas universidades preenchidos por pessoas trans. “Tanto no ensino fundamental e no médio, quanto no superior, minha experiência foi, muitas vezes, de abandono e sofrimento. Em várias ocasiões eu cogitei abandonar os estudos, mas coloquei na cabeça que eu precisava daquilo”, conta.

Uma pesquisa da Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes) realizada em 2018 mostrou que mesmo nas universidades com cotas para essa população as vagas não eram totalmente ocupadas. O levantamento feito pela Andifes é um dos poucos que recorta dados sobre a população trans; uma das dificuldades em criar políticas públicas específicas é o apagão de informações – no próprio Ministério da Educação, faltam dados sobre o acesso da população trans na educação. 

Consultora há mais de quatro anos, foi desse trabalho que ela conseguiu a renda para concluir a faculdade. Jhully diz que os produtos que vendia a ajudavam a pagar o deslocamento até o campus da Universidade Federal do Acre, a alimentação nos dias de jornada de estudos prolongada, além do material de que precisava para acompanhar as aulas. “Eu sou a única pessoa da minha família formada na universidade”, diz.  

Mas a dificuldade de acesso da população trans à educação começa bem antes. Uma pesquisa feita pelo defensor público João Paulo Carvalho Dias, presidente da Comissão da Diversidade Sexual da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), estima que no Brasil 82% das pessoas trans e travestis tenham abandonado os estudos ainda na Educação Básica. Para Jhully, a discriminação na escola não vem só de colegas. “Falta na comunidade escolar mais preparação para receber a população LGBT. O papel da escola não é te desmerecer como pessoa, é te abrir portas, abrir o mundo pra você conhecer e ter novas experiências.”  

A experiência da população LGBTQIAP+ pode ser violenta também na escola. Números da Associação Brasileira de Gays, Lésbicas, Bissexuais, Travestis e Transexuais (ABGLT) mostram que 73% dos alunos LGBTs já sofreram agressões verbais relacionadas à orientação sexual. Uma das estratégias para reverter esse cenário é apostar no reconhecimento das diferenças entre os estudantes, o que fica mais fácil em uma comunidade escolar com vínculos fortes. 

A experiência do Cícero Igor dos Santos, de 19 anos, foi a de uma passagem proveitosa pela escola. O fato de ele ter frequentado o Ensino Médio Integral, ele avalia, fez toda diferença para isso, em função do protagonismo dos jovens que o modelo estimula. “Foi uma experiência muito transformadora. Foi quando eu comecei a perceber que as minhas escolhas importavam e iam impactar meu futuro. Foi quando eu consegui projetar os meus sonhos”, conta.  

Agora estudante de geografia na Universidade Federal de Sergipe, Cícero estudou em uma escola estadual de Aracaju e se engajou nas atividades que promovem e fortalecem o Ensino Médio Integral. Ele foi um dos estudantes porta-vozes do estado enquanto estava na escola e participou de encontros com jovens de todas as regiões do Brasil, o que diz ter sido uma experiência valiosa. Para o futuro geógrafo, a educação foi fundamental também para que ele pudesse falar sobre quem é.

“Eu sou parte da comunidade LGBTQIAP+ e sei que crescemos castrados do direito à educação. E isso acontece porque, quando temos educação, sabemos quem somos e aonde queremos chegar”, avalia Cícero. “É muito importante que a educação chegue e que se fale sobre a comunidade LGBTQIAP+, para que meninos gays, meninas lésbicas, pessoas bissexuais e toda a comunidade tenha noção de tudo que ela representa e de que ninguém precisa ter vergonha de ser quem é”.

O diálogo, na opinião do Cícero, é o que ainda falta para melhorar o acolhimento da população LGBTQIAP+ nas escolas e garantir que a educação transforme também a vida dessas pessoas. “Teríamos que fazer com que esse tema seja mais presente nas escolas. Quando a gente entende que são pessoas que amam, querem ser amadas e querem ser respeitadas, fica mais fácil. Quando a gente entende melhor sobre o outro, a gente respeita melhor o outro”. 

Jhully Domingues vê mudanças significativas na escola de hoje, que ela considera mais aberta do que a do tempo em que ela frequentou as aulas. “Eu sofri muito preconceito, principalmente de professores e diretores por causa da minha identidade de gênero, que nem entendia muito bem ainda. Mas hoje eu acho que as pessoas conseguem se expressar, os LGBTs conseguem ser eles mesmos na escola. Com o tempo, a tendência acho que é melhorar,” diz ela.

Para a bióloga, a educação para a população LGBTQIAP+ é o que vai garantir que os espaços no mercado de trabalho, na universidade e na vida social estejam garantidos. “É o meio de a gente crescer e se desenvolver, é o meio de a gente saber os direitos que tem. É o único meio para você ter aquilo que ninguém pode tirar de você, que é o seu conhecimento.” 

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